O título de uma notícia do portal Sapo é o mote para este momento de reflexão. «Mais de 47 mil portugueses já compraram bilhete para ver As 50 Sombras de Grey».
O filme de Sam Taylor-Johnson é a adaptação cinematográfica do primeiro volume da trilogia erótica e de sucesso mundial da britânica E.L James.
Como espetadores de outros filmes fortes do género (como "Ninfomaníaca", de Lars Von Trier), e tendo em conta o facto de nenhum de nós ter lido o livro, eu e o Fábio Silva fomos ao cinema na passada quarta-feira. Entramos de mente aberta e cheia de imparcialidade para analisar, com todos os prós e contras, o enredo e a realização.
Apesar disso, reconheço que a fasquia (depois da visualização da maioria dos nomeados aos Óscares) ia demasiado elevada e era difícil conseguir igualar tudo o que tenho visto nos últimos tempos.
As minhas piores previsões confirmaram-se: o filme é bem pior do que julgava ser e, no fim, considerei que o preço do bilhete foi mal empregue!
1 - Os diálogos do filme são medonhos, talvez para se manterem fiéis à escrita de E. L. James. Podem ser comparados com um diálogo entre crianças de 3 anos, na creche, falando sobre brinquedos. Mas bem pior.
2 - O enredo e a rapidez com que tudo decorre dificilmente teria tradução na vida real. Anastasia Steele (Dakota Johnson) é uma estudante de Literatura Inglesa que, a pedido da sua companheira de casa, vai entrevistar o multimilionário e arrogante Christian Grey (Jamie Dornan). Em quatro dias, conhecem-se, ela perde a virgindade, ele controla-a e ela é a cobaia para as experiências fetichistas de Grey.
3 - As representações de Dakota e Jamie são pouco naturais, monótonas, fracamente expressivas e demasiado forçadas. Nada flui e o diálogo mecânico (tal como cenas em que Anastasia Steele entra no escritório de Grey com um trambolhão) contribuem para um filme demasiado "sem sal".
4- O filme é bipolar, tal como as suas personagens. Anastasia Steel, demasiado púdica em alguns momentos e adotando uma atitude de miúda pacata, passa para uma atitude de curiosidade perante os fetiches de Grey, colocando-os em prática por vontade própria. Depois, termina com um ar sonso e questionando/culpando-se (e a Christian Grey) pelos jogos sexuais em que participa.
Já ele é um homem que se descreve com uma frase de pura poesia «Eu não faço amor, eu fodo a sério» e que defende, para bem de si próprio, que não é romântico, não vai ao cinema nem janta fora. Mas, depois, demonstra a sua faceta de possessivo e controlador (com intervalos de romantismo) e vai buscar Anastasia Steele de helicóptero para um passeio, envia primeiras edições de livros, oferece-lhe um automóvel e um computador...
5 - Tanta coisa em volta dos atores que iriam representar estas personagens... Ela fica muito aquém das expetativas e confessou agora, em entrevista ao jornal "El Pais", que não é o seu corpo que surge em todas as cenas, sendo que a produção terá usado uma dupla de corpo. Ele não é nada de especial, tanto a nível facial como do restante corpo. Nem tem um ar de bad boy (ou, pelo menos, de homem misterioso) que era preciso para o filme. Mais a mais: ele tem um olho mais pequeno que outro, o que não é nada sensual.
5 - Quem esperou pelas cenas de sexo e sadomasoquismo pode esquecer qualquer idealização... É tudo demasiado soft, com poucos objetos, poucas cenas fortes, sem corpo à mostra. Quem esperava ver órgãos sexuais, vai-se cansar de tanta espera; quem esperava intensidade, achará as cenas aborrecidas.
6 - Dakota, no papel de Anastasia, morde o lábio - ao longo dos primeiros minutos de filme - cerca de 18 vezes. Sensual? Não, forçado.
7 - Por fim (last, but not least), a história enaltece o abuso das mulheres. E não pensem que sou eu que sou demasiado conservadora... A atitude arrogante, machista e dominadora de Christian Grey - tal como a violência sexual que o mesmo utiliza -, preocupando-se apenas e só com o seu prazer e satisfação pessoal, mostra que o filme não defende, apesar dos tempos que correm e das publicidades alusivas, o fim da agressão psicológica e física. O filme foi banido das salas de cinema na Malásia e na Indonésia e, noutros países orientais, algumas cenas foram censuradas.
Os pontos positivos são poucos mas existem, a saber:
- a casa do Mr Grey é de fazer inveja a qualquer pessoa que anda a pensar em criar o seu cantinho;
- algumas cenas do filme, ainda que o objetivo não seja esse, conseguem ser cómicas, tornando o filme leve e arejado o suficiente para não se ter um derrame cerebral enquanto se visualiza o mesmo;
- a banda-sonora é qualquer coisa extraordinária. É, sem dúvida, o ponto forte do filme. Arranca com uma versão do “I Put a Spell on You” pela voz da Annie Lenox, envolve Beyoncé, um toque pop com Ellie Goulding e o seu “Love Me Like You Do”, e ainda nos dá “Earned it”, dos The Weekend.
Em resumo, muito marketing e pouca qualidade. Desilude-me a cultura portuguesa (e mundial, no fundo) que se rende a filmes com esta qualidade e deixa de lado (com muito pouca receita de bilheteira e muito menos blábláblá) extraordinárias obras como Boyhood, Teoria de Tudo, Jogo da Imitação ou, numa mesma área de abordagem, Ninfomaníaca (um filme com 5 horas e meia e muito mais história para contar, tanto a nível visual como sexual e dramático).
Nota ainda para a composição da sala de cinema nesta noite de quarta-feira: meia dúzia de casais (se tanto), em que a faixa etária já roçava ou ultrpassava os 40/50 anos e uns quantos grupos de mulheres - com uma faixa entre os 20 e os 40 - que se juntaram para ver o filme. Muitos suspiros e comentários durante a película, muitos cochichos, algumas gargalhadas.
50 Sombras de Grey
★
(apenas pela qualidade da banda-sonora e da fotografia)
0 comentários:
Enviar um comentário